domingo, 19 de abril de 2009

CARCOMIDA - POEMA DO SAMIR MATHIAS

Carcomida



Nada mais resta,
apenas restos
e o fadigar do fim.
As lembranças são restos,
restos de uma vida,
restos de paixão finita,
que se perdeu com o tempo.
Restos,
são restos .
Restou-me um cadáver,
um corpo sem alma,
um copo vazio,
apenas a vida e a morte.


Deixaste-me caído
como o bêbado em marcha trôpega,
a tropeçar e cair pela vida;
deixaste-me apenas,
não me deste outra alternativa,
lamentaste de forma vil e cruel
o sorriso que ainda trago
e a perseverança da luta.
Venceste de forma cruel,
humilhaste a quem te deu vida,
e não te envergonhaste
daqueles que, caídos,
estenderam as mãos
à procura do nada.

Foste passageira
como um tsunami,
arrasaste vidas,
emoções e esperanças;
deixaste restos,
restos para o amanhã,
apenas restos,
restos de corpos caídos,
ainda que pútridos;
tiveste a dignidade
de não chamar os urubus,
deixaste à mercê do tempo,
na degradação lenta
e famigerada das bactérias,
e por trás do sorriso gososo
causado pelo perfume inebriante da decomposição,
vi em teu rosto uma lágrima,
ou talvez
uma gota de chorume,
de arrependimento ou gozo.

De nojo, vomitaste na boca daquele que te deu vida,
vômitos de restos,
purulento...
e causaste náusea
naqueles que te seguiam,
e em comoção,
todos vomitaram sobre os corpos caídos,
todos eram restos,
menos as bactérias,
prenúncio de vida,
começo da morte.



Vi que o fim
é a tangência do começo
e oblíquo da razão.
Desenhaste enigmamente um triângulo,
como se fosse um losângulo,
e em cada triângulo
depositaste um corpo,
um homem e uma mulher,
e admiraste a nudez disforme da putrefação ,
como um voyeur,
que de longe
admira e fantasia,
a vida e a morte.

Não tiveste culpa,
tu não tens culpa,
a culpa é resto, são restos que restaram:
restos da moral,
restos da vida,
restos da morte.
Cansado,
depositei restos de flores
em um túmulo vazio.
Sentei-me,
cansado e debruçado sobre o sepulcro.
Resta-me apenas esperar pelos restos,
restos inúteis
e enchê-lo de nada,
de apenas sobras, daquilo que não serviu,
ou daquilo que restou .

Túmulo cheio,
cheio do nada;
apenas restos de cadáveres,
que ,sem nada, esperam serem preenchidos
por novos cadáveres.
As flores que depositei murcharam com o tempo;
sobraram espinhos e talos secos,
que, em contemplação passiva,
morrem e odorizam a morte.

Perturbaste-te com a minha presença;
a minha visita é perturbadora
e provoca uma revoada de urubus,
como gaivotas a beira-mar à procura de restos,
e magnetizado pelo ballet beethoviano dos urubus
e pela correria faminta dos ratos.
Satisfiz-me com a devoração prazerosa dos restos da morte,
contentei-me com o seu fim
e com a degustação de seus restos,
nada sobrou,
apenas urubus, ratos e baratas.

Nenhum comentário: