terça-feira, 20 de maio de 2025

 EVANGELHO ( do livro A Missa dos Oprimidos - Monólogo)

Hamilton Raposo Miranda Filho 


CARCOMIDA

I

Nada mais me resta,

Apenas os restos e o fadigar do fim.

As lembranças são restos,

Restos de uma vida

Restos de uma paixão finita

Que se perdeu com o tempo.

Restos são restos.

Restou-me um cadáver,

Um corpo sem alma

E um copo vazio.


II


Deixaste-me caído

Como o bêbado em marcha trôpega 

A tropeçar e cair pela vida,

Deixaste-me apenas.

Não me deste nenhuma alternativa,

Lamentaste de forma vil e cruel

O sorriso que ainda trago

E a perseverança da luta.

Venceste de forma cruel

E humilhaste a quem te deu vida,

E não te envergonhaste

Daqueles que caídos

Estenderam as mãos 

À procura do nada.


III


Foste passageira como um tsunami,

Arrasaste vidas,

Emoções e esperanças, 

Deixastes restos.

Restos para o amanhã.

Apenas restos,

Restos de corpos caídos,

Ainda que pútridos,

Tiveste a dignidade 

De não chamar os urubus,

Deixaste à mercê do tempo,

Na degradação lenta

E famigerada das bactérias

E por trás do sorriso gasoso

Causado pelo perfume inebriante da decomposição,

Vi em teu rosto uma lágrima

Ou talvez,

Uma gota de chorume

De arrependimento ou gozo.

De nojo, vomitaste na boca daquele que te deu vida,

Vômitos de restos,

Purulentos...

E causaste náusea

Naqueles que te seguiam,

E em comoção,

Todos vomitaram sobre os corpos caídos,

Todos eram restos,

Menos as bactérias, 

Prenúncio de vida,

E começo da morte.


IV


O fim

É a tangência do começo

E oblíquo da razão.

E matematicamente 

Desenhaste enigmaticamente um triângulo,

Como se fosse um losango,

E em cada triângulo

Depositaste um corpo,

Um homem e uma mulher,

E admiraste a nudez disforme da putrefação,

Como um voyeur,

Que, de longe,

Admira e fantasia

A vida e a morte.


V


Não tiveste culpa,

Tu não tens culpa,

A culpa é resto, são restos que restaram,

Restos da moral,

Restos da vida,

Restos da morte.


VI


Cansado,

Depositei restos de flores

Em um túmulo vazio.

Sentei-me,

Cansado e debruçado sobre o sepulcro;

Resta-me apenas esperar pelos restos,

Restos inúteis,

E enchê-lo de nada,

Ou de apenas sobras, 

Daquilo que não serviu

Ou daquilo que restou.


VII


O túmulo estava cheio,

Cheio do nada,

Apenas restos de cadáveres,

Que, sem nada, 

Esperam ser preenchidos

Por novos cadáveres

Ou restos de vida.

As flores que depositei murcharam com o tempo,

Sobraram espinhos e talos secos, 

Que, em contemplação passiva, 

Morrem e odorizam a morte.


Ficaste perturbada com a minha presença,

Pois a minha visita é perturbadora

E provoca uma revoada de urubus,

Como gaivotas a beira-mar a procura de restos;

E magnetizado pelo ballet beethoveniano dos urubus

E pela correria faminta dos ratos,  

Satisfiz-me com a devoração prazerosa dos restos da morte.


Contentei-me com o seu fim

E com a degustação de seus restos,

Nada sobrou,

Apenas urubus, ratos e baratas.

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